Entendimento
A legalidade da invasão domiciliar, realizada pela polícia sem a presença de um mandado judicial, pressupõe a existência de elementos concretos e presentes que indiquem a existência de um flagrante delito ou o consentimento legítimo do morador, em relação ao qual não pode haver coação.
Hipótese fática
Um réu, condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por porte ilegal de arma e por tráfico de drogas, ingressou com habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça para pleitear pela nulidade do processo penal ao qual respondeu.
A impetração argumentou que a entrada no domicílio do acusado, realizada pela polícia, não se baseou em um consentimento do morador ou em uma justa causa, o que levou à ilicitude da descoberta da droga no interior da residência.
Fundamentos
O caso concreto decidido pelo STJ trabalhava com uma prisão em flagrante em razão do porte ilegal de arma, realizada ainda fora da residência do acusado.
A polícia, então, baseando-se na informação de que o preso já havia sido condenado por tráfico de drogas e levando em conta um suposto consentimento que ele forneceu, entrou no domicílio do acusado, momento em que (utilizando cães farejadores) descobriu a presença de drogas, o que levou à abertura de processo tanto pelo crime do art. 14 da Lei 10.826/2003 (porte ilegal de arma) como pelo delito do art. 33 da Lei 11.343/2006 (tráfico de entorpecente).
O STJ, por isso, apreciou a legalidade dessa descoberta de provas, para de logo lembrar que a regra constitucional estabelece a inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI, da CF), ao mesmo tempo em que prevê as exceções, relacionadas ao consentimento do morador, à presença de um flagrante delito ou à existência de uma decisão judicial que a autorize.
O acórdão proferido pelo STJ analisou essas duas primeiras exceções (consentimento do morador e flagrante delito), para concluir que a prova produzida no caso concreto era ilícita.
A Corte lembrou que o consentimento do morador precisa ser manifestado de forma legítima, algo que não existiu na hipótese. Na relação do Estado (parte mais forte) com o indivíduo (parte mais fraca), não basta a palavra do agente público afirmando que o morador realizou o consentimento para a entrada no domicílio. Em caso de dúvida, é preciso colher a autorização escrita do morador (com a indicação, sempre que possível, de testemunhas) e promover o registro audiovisual da operação.
A rigor, em uma situação em que o morador já se encontrava preso do lado de fora da residência, o consentimento da invasão domiciliar deve ser obtido com todas as cautelas possíveis, sobretudo se os policiais fazem o uso de arma.
A Corte pontuou o risco de que esse consentimento seja obtido por meio de uma coação, algo repelido expressamente pelo Direito Civil, pelo Direito do Consumidor e, com maior razão ainda, pelo Direito Penal, circunstância que torna a prova inválida.
Se não bastasse a interpretação realizada diretamente do art. 5º, XI, da CF, o STJ ainda trouxe à tona um precedente da Suprema Corte dos Estados Unidos, utilizado para completar o raciocínio:
“Como reforço argumentativo, em diálogo de fontes, vale aludir à decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, em Scheneckloth v. Bustamonte, 412 U.S. 218 (1973), em que estabeleceu algumas orientações sobre o significado do termo “consentimento”. Decidiu-se que as buscas mediante consentimento do morador (ou, como no caso, do ocupante do automóvel onde se realizou a busca) são permitidas, “mas o Estado carrega o ônus de provar ‘que o consentimento foi, de fato, livre e voluntariamente dado’”. O consentimento não é livre quando de alguma forma se percebe uma coação da sua vontade. A Corte indicou que o teste da “totality of circumstances” deve ser aplicado mentalmente, considerando fatores subjetivos, relativos ao próprio suspeito (i.e., se ele é particularmente vulnerável devido à falta de estudos, baixa inteligência, perturbação mental ou intoxicação por drogas ou álcool) e fatores objetivos que sugerem coação (se estava detido, se os policiais estavam com suas armas à vista, ou se lhe disseram ter o direito de realizar a busca, ou exercitaram outras formas de sutil coerção), entre outras hipóteses que poderiam interferir no livre assentimento do suspeito (ISRAEL, Jerold H.; LAFAVE, Wayne R. Criminal procedure. Constitucional limitations. 5. ed. St. Paul: West Publishing, 1993, p. 139-141).”
Por isso, é imprescindível que se faça a análise das circunstâncias do caso concreto para se concluir pela (il)legalidade do consentimento relacionado à invasão domiciliar, consentimento que não pode ser manifestado por meio de coação – o que levou o STJ, nessa hipótese concreta, a decretar a sua ilegalidade.
Restava, então, o raciocínio em torno do flagrante delito, na medida em que os crimes relacionados à Lei de Tráfico de Drogas (Lei 11.343/2006) são considerados permanentes.
Mas a existência desse flagrante deve ser revelada por circunstâncias prévias à entrada domiciliar e deve se basear em elementos presentes e concretos, e não em considerações de natureza pretérita e abstrata.
No caso julgado pelo STJ, a existência do flagrante delito partiu da afirmação de que o preso já havia sido condenado por tráfico de drogas, elemento tomado como ilegítimo.
A polícia deveria ter realizado a colheita de algum dado concreto que permitisse concluir pela existência de indícios reais de que o preso estava cometendo o crime de tráfico de drogas (em alguma das modalidades previstas na Lei 11.343/2006), procedimento que não foi realizado.
Se não for assim, haverá a prevalência do “direito penal do autor” (que leva em conta apenas o passado do agente) sobre o “direito penal do fato” (que leva em conta a existência de dados reais e contemporâneos aos acontecimentos), algo que não se pode admitir.
O STJ ainda mencionou que a polícia realizou o chamado fishing expedition, uma espécie de procura especulativa de provas, que, na hipótese, não poderia ser admitida, porque não havia indícios concretos e contemporâneos de que o preso tinha cometido o delito de tráfico de drogas.
O entendimento manifestado pela 6ª Turma do STJ também é compartilhado pela 5ª Turma desse mesmo Tribunal (HC 616.584), assim como está alinhado à tese do Tema 280 da repercussão geral do STF, colocado no sentido de que “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.”
Ao fim, o STJ anulou a condenação que o acusado sofreu em relação ao crime de tráfico de drogas, mas manteve aquela proferida relativamente ao delito de porte de ilegal de armas (cuja prisão em flagrante não indicou qualquer ilegalidade).
Dispositivos
Constituição Federal
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
(...)
Ementa
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. AUSÊNCIA DE CONSENTIMENTO VÁLIDO DO MORADOR. COAÇÃO AMBIENTAL/CIRCUNSTANCIAL. VÍCIO NA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.
1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
2. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo - a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno - quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). No mesmo sentido, neste STJ: REsp n. 1.574.681/RS.
3. No caso, policiais receberam uma denúncia anônima segundo a qual o acusado estava com uma arma de fogo em via pública, razão por que o abordaram e encontraram a referida arma. Depois disso, decidiram ir até a residência da genitora dele, onde ele disse que residia, mas ela informou que o réu morava com o pai. Então dirigiram-se até tal residência e entraram no imóvel com a suposta autorização do paciente, oportunidade em que soltaram cães farejadores de drogas, sob a justificativa de que o réu tinha um antecedente por tráfico.
4. Não houve, entretanto, referência a prévia investigação, monitoramento ou campanas no local, a afastar a hipótese de que se tratava de averiguação de informações robustas e atuais acerca da existência de drogas naquele lugar. Da mesma forma, não se fez menção a nenhuma atitude suspeita, externalizada em atos concretos, tampouco movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas. A denúncia anônima, aliás, nem sequer tratava da presença de entorpecentes no imóvel, mas sim do porte de arma de fogo em via pública distante do domicílio, a qual já havia sido encontrada e apreendida.
5. O simples fato de o acusado ter um antecedente por tráfico não autorizava a realização de busca domiciliar, porquanto desacompanhado de outros indícios concretos e robustos de que, naquele momento específico, ele guardava drogas em sua residência.
Ora, admitir a validade desse fundamento para, isoladamente, autorizar essa diligência invasiva, implicaria, em última análise, permitir que todo indivíduo que um dia teve algum registro criminal na vida tenha seu lar diuturnamente vasculhado pelas forças policiais, a ensejar, além da inadmissível prevalência do "Direito Penal do autor" sobre o "Direito Penal do fato", uma espécie de perpetuação da pena restritiva de liberdade, por vezes até antes que ela seja imposta. Isso porque, mesmo depois de cumprida a sanção penal (ou até antes da condenação), todo sentenciado (ou acusado ou investigado) poderia ter sua residência vistoriada, a qualquer momento, para "averiguação" da existência de drogas, como se a anotação criminal lhe despisse para todo o sempre da presunção de inocência e da garantia da inviolabilidade domiciliar, além de lhe impingir uma marca indelével de suspeição.
6. Por ocasião do julgamento do HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti), a Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, à unanimidade, propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais. Na ocasião, foram apresentadas as seguintes conclusões: a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito; b) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada; c) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação; d) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato.
Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo; e) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.
7. A Quinta Turma desta Corte, no julgamento do HC n. 616.584/RS (Rel. Ministro Ribeiro Dantas, DJe 6/4/2021) perfilou igual entendimento ao adotado no referido HC n. 598.051/SP. Outros precedentes, de ambas as Turmas Criminais, consolidaram tal compreensão.
8. As regras de experiência e o senso comum, somados às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que o paciente, depois de ser abordado e preso por porte de arma de fogo em via pública distante de sua residência, sabendo ter drogas em casa, haveria livre e espontaneamente franqueado a realização de buscas no imóvel com cães farejadores, os quais fatalmente encontrariam tais substâncias.
9. Se, de um lado, deve-se, como regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se há de ignorar, por outro lado, que a notoriedade de frequentes eventos de abusos e desvios na condução de diligências policiais permite inferir como pouco crível a versão oficial apresentada no inquérito policial, máxime quando interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota indisfarçável desejo de se criar narrativa que confira plena legalidade à ação estatal. Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias concretas - avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência quotidiana do que ocorre nos centros urbanos -, ser dirimida a favor do Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dubio pro libertas).
10. Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador.
11. Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho - sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento (caso provado), em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial. Isso porque a prova do consentimento do morador é um requisito necessário, mas não suficiente, por si só, para legitimar a diligência policial, porquanto deve ser assegurado que tal consentimento, além de existente, seja válido, isto é, livre de vícios aptos a afetar a manifestação de vontade.
12. Em Scheneckloth v. Bustamonte, 412 U.S. 218 (1973), a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu algumas orientações sobre o significado do termo "consentimento". Decidiu-se que as buscas mediante consentimento do morador (ou, como no caso, do ocupante do automóvel onde se realizou a busca) são permitidas, "mas o Estado carrega o ônus de provar 'que o consentimento foi, de fato, livre e voluntariamente dado'". O consentimento não é livre quando de alguma forma se percebe uma coação da sua vontade. A Corte indicou que o teste da "totality of circumstances" deve ser aplicado mentalmente, considerando fatores subjetivos, relativos ao próprio suspeito (i.e.
, se ele é particularmente vulnerável devido à falta de estudos, baixa inteligência, perturbação mental ou intoxicação por drogas ou álcool) e fatores objetivos que sugerem coação (se estava detido, se os policiais estavam com suas armas à vista, ou se lhe disseram ter o direito de realizar a busca, ou exercitaram outras formas de sutil coerção), entre outras hipóteses que poderiam interferir no livre assentimento do suspeito (ISRAEL, Jerold H.; LAFAVE, Wayne R. Criminal procedure. Constitucional limitations. 5. ed. St. Paul:
West Publishing, 1993, p. 139-141).
13. O art. 152 do Código Civil, ao disciplinar a coação como um dos vícios do consentimento nos negócios jurídicos, dispõe que: "No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela". Se, no Direito Civil, que envolve, em regra, direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, todas as circunstâncias que possam influir na liberdade de manifestação da vontade devem ser consideradas, com muito mais razão isso deve ocorrer no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis de um indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.
14. É justamente essa disparidade de forças, aliás, somada à ausência de liberdade negocial concreta, que leva ao frequente reconhecimento da invalidade da manifestação de vontade da parte hipossuficiente no âmbito do Direito do Consumidor, mesmo quando externada por escrito e relativa a direitos disponíveis, em virtude da abusividade de cláusulas impostas pelo lado mais forte, nos termos, por exemplo, do art. 51, IV do CDC: "São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade".
15. Deveras, retomando a hipótese dos autos, uma vez que o acusado já estava preso por porte de arma de fogo em via pública, sozinho, diante de dois policiais armados, sem a opção de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos, não é crível que estivesse em plenas condições de prestar livre e válido consentimento para que os agentes de segurança estendessem a diligência com uma varredura especulativa auxiliada por cães farejadores em seu domicílio à procura de drogas, a ponto de lhe impor uma provável condenação de 5 a 15 anos de reclusão, além da pena prevista para o crime do art. 14 do Estatuto do Desarmamento, no qual já havia incorrido.
16. A diligência policial, no caso dos autos, a rigor, configurou verdadeira pescaria probatória (fishing expedition) no domicílio do acusado. Com efeito, uma vez que a arma de fogo mencionada na denúncia anônima já havia sido apreendida com o paciente em via pública (distante da residência, frise-se) e não existia nenhum indício concreto, nem sequer informação apócrifa, quanto à presença de drogas no interior do imóvel, não havia razão legítima para que os agentes de segurança se dirigissem até o local e realizassem varredura meramente especulativa à procura de entorpecentes com cães farejadores. Cabia-lhes, apenas, diante do encontro da arma de fogo em via pública, conduzir o réu à delegacia para a lavratura do auto de prisão em flagrante.
17. A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação da norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes.
18. Porque as instâncias ordinárias, ao condenar o réu pelo crime previsto no art. 14 da Lei n. 10.823/2006, consideraram que a apreensão da arma de fogo ocorreu antes e fora da residência, em contexto fático independente, a condenação por tal delito não é atingida pela declaração de ilicitude das provas colhidas no interior do domicílio, notadamente quando verificado que a validade da busca pessoal que resultou na apreensão da referida arma na cintura do paciente não foi questionada pela defesa.
19. Ordem concedida para, considerando que não houve fundadas razões, tampouco comprovação de consentimento válido para a realização de buscas por drogas no domicílio do paciente, reconhecer a ilicitude das provas por esse meio obtidas, bem como de todas as que delas decorreram, e, por conseguinte, absolvê-lo em relação à prática do delito de tráfico de drogas.
(HC n. 762.932/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 30/11/2022.)