Tese
A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do Código Penal Brasileiro.
Hipótese fática
O Ministério Público de Santa Catarina ingressou com recurso especial (submetido ao rito dos recursos repetitivos) contra acórdão do Tribunal de Justiça do mesmo Estado, o qual entendeu que a conduta atribuída ao acusado (de recusar ser parado em blitz policial) não poderia ser enquadrada no delito de desobediência (previsto no art. 330 do Código Penal).
O recorrente argumentou que “a desobediência deliberada à ordem legal proferida por policiais militares, ainda que com o intuito de manter o estado de liberdade, amolda-se perfeitamente ao tipo legal [...], que prevê a conduta de 'desobedecer à ordem legal de funcionário público'".
A defesa, à sua vez, afirmou que “o fato de o recorrido ter descumprido ordem de parada emanada por policiais para evitar a prisão por outro crime (roubo) não poderia configurar o delito previsto no art. 330 do Código Penal, uma vez que a ‘sua criminalização conflitaria verticalmente com o direito fundamental ao silêncio e de não produzir prova contra si mesmo’”.
Fundamentos
A questão definida pelo STJ dizia respeito ao enquadramento, no delito de desobediência (art. 330 do CP), da conduta de quem se recusa a cumprir ordem emanada de policiamento ostensivo, em contexto em que o agente está tentando se evadir por ter cometido um outro delito.
A discussão envolvia o direito ao silêncio e o direito a não produzir prova contra si mesmo.
Mas o STJ lembrou que “o direito ao silêncio e [o] de não produzir prova contra si mesmo não são absolutos, razão pela qual não podem ser invocados para a prática de outros delitos. Embora por fatos diversos, aplica-se ao presente caso a mesma solução jurídica decidida pela Terceira Seção desta Corte Superior quando do julgamento do REsp n. 1.362.524/MG, submetido à sistemática dos recursos repetitivos, no qual foi fixada a tese de que ‘típica é a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa’”.
A rigor, “a possibilidade de prisão por outro delito não é suficiente para afastar a incidência da norma penal incriminadora, haja vista que a garantia da não autoincriminação não pode elidir a necessidade de proteção ao bem jurídico tutelado pelo crime de desobediência. (...) O acusado tem direito constitucional de permanecer calado, de não produzir prova contra si e, inclusive, de mentir acerca do fato criminoso. Contudo, a pretexto de exercer tais prerrogativas, não pode praticar condutas consideradas penalmente relevantes pelo ordenamento jurídico, pois tal situação caracteriza abuso do direito, desbordando a respectiva esfera protetiva”.
Não custa, por outro lado, fazer referência ao voto vencido, colocado no sentido de que a existência de policiamento ostensivo não constitui um fato relevante para tornar típica a conduta discutida no caso, de modo que a incidência das multas previstas no Código de Trânsito Brasileiro já serviria para gerar a punição devida.
Dispositivos
Código Penal
Desobediência
Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
Ementa
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. PENAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. ART. 330 DO CÓDIGO PENAL. ORDEM LEGAL DE PARADA EMANADA NO CONTEXTO DE ATIVIDADE OSTENSIVA DE SEGURANÇA PÚBLICA. TIPICIDADE DA CONDUTA. SUPOSTO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AUTODEFESA E DE NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. DIREITOS NÃO ABSOLUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO PARA A PRÁTICA DE DELITOS. RECURSO PROVIDO.
1. O descumprimento de ordem legal emanada em contexto de policiamento ostensivo para prevenção e repressão de crimes, atuando os agentes públicos diretamente na segurança pública, configura o crime de desobediência, conforme foi reconhecido, no caso, pelo Juízo de primeira instância.
2. O direito a não autoincriminação não é absoluto, motivo pelo qual não pode ser invocado para justificar a prática de condutas consideradas penalmente relevantes pelo ordenamento jurídico.
3. Recurso especial representativo da controvérsia provido, com a fixação a seguinte tese: A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do Código Penal Brasileiro.
(REsp n. 1.859.933/SC, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Terceira Seção, julgado em 9/3/2022, DJe de 1/4/2022.)