Tese
Em se tratando de multa aplicada às pessoas jurídicas proprietárias de veículo, fundamentada na ausência de indicação do condutor infrator, é obrigatório observar a dupla notificação: a primeira que se refere à autuação da infração e a segunda sobre a aplicação da penalidade, conforme estabelecido nos arts. 280, 281 e 282 do Código de Trânsito Brasileiro.
Hipótese fática
O Sindicato das Empresas Locadoras de Veículos ingressou com recurso especial contra o julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas decidido pelo TJ/SP, em que o Tribunal de segundo grau entendeu que “Os art. 280 e 281 da LF nº 9.503/97 [Código Brasileiro de Trânsito], de 23-9-1997, não se aplicam à sanção pela não indicação de condutor prevista no art. 257, § 7º e 8º, assim dispensada a lavratura de autuação e consequente notificação.”
Em síntese, a corte paulista entendeu que não há necessidade de se fazer a dupla notificação prevista nos arts. 280 e 281 do Código de Trânsito Brasileiro (uma para comunicar a existência da infração e a outra relativa à aplicação da penalidade) quando se tratar de infração cometida por pessoa jurídica que, tendo o veículo registrado no seu nome, não promove a identificação do condutor.
O caso, então, chegou ao STJ por meio de recurso especial julgado de acordo com a sistemática dos recursos repetitivos.
Fundamentos
A controvérsia decidida pelo STJ surgiu porque uma das infrações administrativas constatada no caso concreto se deu dentro do processo administrativo em que se apurava a primeira infração. Daí a necessidade de se definir, relativamente à segunda infração, sobre a incidência da dupla notificação do infrator, com a primeira notificação destinada a lhe dar ciência do auto de infração e a outra relativa à aplicação da penalidade.
O STJ começou por estabelecer a premissa de que cada uma das infrações constatadas possui autonomia.
A primeira infração se relacionava ao descumprimento de alguma das regras impostas no CTB (dirigir em velocidade acima da permitida, estacionar em local proibido etc.). Já a segunda infração foi cometida dentro do processo administrativo destinado a apurar a primeira infração.
A rigor, essa segunda infração consistia na omissão da pessoa jurídica (quando o veículo estiver registrado no seu nome) em indicar o motorista responsável pelo cometimento da primeira infração (art. 257, §§ 7º e 8º, do CTB).
A Corte pontuou, então, que a existência de infrações autônomas, que se prendem a defesas específicas e diferentes, exige que haja a dupla notificação em relação a cada uma delas. O fato de a segunda infração ser cometida dentro do processo administrativo que apura a primeira infração não altera o fato de que se trata de um ilícito administrativo previsto no Código de Trânsito Brasileiro e que impõe, por isso mesmo, a aplicação dos dispositivos previstos nessa lei, inclusive a dupla notificação tratada nos seus arts. 280 e 281.
A Corte lembrou que a aplicação de uma penalidade deve ser antecedida de uma interpretação que amplie o alcance do devido processo legal.
O STJ ainda pontuou que o interesse público não pode servir de fundamento para se afastar a dupla notificação, na medida em que o contraditório não pode ser minimizado.
Dispositivos
Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97)
Art. 257. As penalidades serão impostas ao condutor, ao proprietário do veículo, ao embarcador e ao transportador, salvo os casos de descumprimento de obrigações e deveres impostos a pessoas físicas ou jurídicas expressamente mencionados neste Código.
(...)
§ 7º Quando não for imediata a identificação do infrator, o principal condutor ou o proprietário do veículo terá o prazo de 30 (trinta) dias, contado da notificação da autuação, para apresentá-lo, na forma em que dispuser o Contran, e, transcorrido o prazo, se não o fizer, será considerado responsável pela infração o principal condutor ou, em sua ausência, o proprietário do veículo. (Redação dada pela Lei nº 14.071, de 2020)
§ 8º Após o prazo previsto no parágrafo anterior, não havendo identificação do infrator e sendo o veículo de propriedade de pessoa jurídica, será lavrada nova multa ao proprietário do veículo, mantida a originada pela infração, cujo valor é o da multa multiplicada pelo número de infrações iguais cometidas no período de doze meses.
Art. 281-A. Na notificação de autuação e no auto de infração, quando valer como notificação de autuação, deverá constar o prazo para apresentação de defesa prévia, que não será inferior a 30 (trinta) dias, contado da data de expedição da notificação. (Incluído pela Lei nº 14.071, de 2020)
Art. 282. Caso a defesa prévia seja indeferida ou não seja apresentada no prazo estabelecido, será aplicada a penalidade e expedida notificação ao proprietário do veículo ou ao infrator, por remessa postal ou por qualquer outro meio tecnológico hábil que assegure a ciência da imposição da penalidade. (Redação dada pela Lei nº 14.229, de 2021)
Ementa
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 1.036 E SEGUINTES DO CPC/2015 E RESOLUÇÃO STJ 8/2008. AUTO DE INFRAÇÃO SEM IDENTIFICAÇÃO DO INFRATOR. VEÍCULO DE PROPRIEDADE DE PESSOA JURÍDICA. NECESSIDADE DE DUPLA NOTIFICAÇÃO. UMA NA LAVRATURA DO AUTO DE INFRAÇÃO, E OUTRA NA IMPOSIÇÃO DA PENALIDADE. CASOS DO ART. 257, § 8º, DO CTB. PRECEDENTES DO STJ.
1. Trata-se de dois Recursos Especiais, interpostos pelo Sindicato das Empresas Locadoras de Veículos Automotores do Estado de São Paulo - SINDLOC/SP, por Diego Wasiljew Candido da Silva e Dangel Cândido da Silva, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) 2187472-23.2017.8.26.0000, em que foi fixada a seguinte tese (fls. 824-835): "Os art. 280 e 281 da LF nº 9.503/97, de 23-9-1997, não se aplicam à sanção pela não indicação de condutor prevista no art. 257, § 7º e 8º, assim dispensada a lavratura de autuação e consequente notificação. Tal dispositivo e a Resolução CONTRAN nº 710/17 não ofendem o direito de defesa".
2. In casu, busca-se uniformizar o entendimento sobre a necessidade de envio de dupla notificação prevista nos arts. 280 e 281 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) para aplicação da penalidade prevista no art. 257, § 8º, do mesmo diploma legal. A penalidade em questão é prevista pelo CTB para o descumprimento, pelas pessoas jurídicas proprietárias de veículos, da obrigação de, em cada autuação recebida, identificar no prazo legal o respectivo condutor. RESOLUÇÃO DA CONTROVÉRSIA SUBMETIDA AO RITO DO ART. 1.036 DO CPC/2015 E DA RESOLUÇÃO STJ 8/2008 3. Admitida a afetação com a seguinte delimitação da tese controvertida: "Verificação da necessidade de observação dos art. 280 e 281 da Lei 9.503/1997 em relação à infração pela não indicação de condutor prevista no art. 257 § 7º e 8º, para definir a imperiosidade da notificação da infração e da notificação de eventual imposição de penalidade". DISCIPLINA LEGAL 4. O Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 257, §§ 7º e 8º, prevê a aplicação de nova multa ao proprietário de veículo registrado em nome de pessoa jurídica quando não se identifica o condutor infrator no prazo determinado. Da redação da lei, verifica-se que as duas violações são autônomas em relação à necessidade de notificação da autuação e da aplicação da pena decorrente da infração, devendo ser concedido o devido prazo para defesa em cada caso. NECESSIDADE DE DUPLA NOTIFICAÇÃO: DE AUTUAÇÃO E DE APLICAÇÃO DA PENA DECORRENTE DA INFRAÇÃO - QUANTO A ESSA PENALIDADE ESPECÍFICA 5. In casu, a pessoa jurídica é proprietária de veículos, os quais são conduzidos por funcionários. Quando esses funcionários cometem infração de trânsito usando tais veículos, a pessoa jurídica deve indicar o condutor, para fins de punição individualizada. Se não indica, além da infração cometida com o veículo, ocorre nova infração, que é a não indicação de condutor. A controvérsia que se instaura é para saber se quanto a esta infração, de não indicação de condutor, há necessidade de expedir nova notificação, após expirado o prazo concedido. No caso, a pessoa jurídica deverá arcar com o valor da multa da infração de trânsito e também da não indicação de condutor, caso isso ocorra.
6. Tratando-se de situações distintas, geradoras de infrações distintas, o direito de defesa a ser exercido em cada uma será implementado de forma igualmente distinta. Ou seja, as teses de defesa não serão as mesmas, daí a razão para que se estabeleça relação processual diferenciada, para cada situação.
7. Assim, sempre que estiver em jogo a aplicação de uma garantia, a regra de interpretação não deve ser restritiva. Ademais, sempre que depararmos um gravame, penalidade ou sacrifício de direito individual, a regra de interpretação deve, de alguma forma, atender quem sofre esse tipo de consequência, quando houver alguma dúvida ou lacuna. Veem-se exemplos dessa perspectiva no Processo Penal, com muita clareza, em que a dúvida beneficia o réu. Observa-se também no Direito do Consumidor, no do Trabalho, nos quais a parte fragilizada na relação jurídica material recebe "compensação", por assim dizer, ou desequiparação lícita, para que, no conflito verificado em um processo contra um ente mais "forte", possa se estabelecer, tanto quanto possível, a igualdade material e ela não seja prejudicada por ser mais frágil.
8. Sendo administrativa ou de trânsito a multa, não se vê motivo para dela afastar a aplicação dos arts. 280, 281, 282 do CTB (os quais estão contidos na mesma lei federal que prevê tal multa), nem mesmo obstáculos que impossibilitem que uma segunda notificação seja expedida antes da imposição da penalidade, sendo incontestável que o próprio art. 257, § 8º, do CTB determina sanção financeiramente mais grave à pessoa jurídica que não identifica o condutor no prazo legal. Não se trata, portanto, de "fazer letra morta o texto legal", mas, ao contrário, de cumpri-lo com efetividade. PANORAMA GERAL DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ 9. Ao julgar o mérito do IRDR, o TJSP fixou tese em sentido contrário ao entendimento do STJ. De acordo com a tese fixada pelo Tribunal a quo, desnecessária dupla notificação - ou seja, de notificação de autuação e de aplicação da pena decorrente da infração - quanto a essa penalidade específica.
10. Conforme a jurisprudência do STJ, nesses casos, em se tratando de multa aplicada à pessoa jurídica proprietária de veículo, fundamentada na ausência de indicação do condutor infrator, é obrigatório observar a dupla notificação, a primeira refere-se à autuação da infração e a segunda é relativa à aplicação da penalidade (arts. 280, 281 e 282, todos do CTB). Confiram-se, nesse sentido, os seguintes precedentes: AgInt no REsp 1.829.234/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 27.11.2019; AgInt nos EDcl no AREsp 1.219.594/SP; Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 17.10.2018; AgInt no AREsp. 906.113/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 8.3.2017; AREsp 1.150.193/SP, Rel. Min. Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 6.11.2017; REsp.
1.724.601/SP, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 28.6.2019; AREsp 1.255.108/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 12.4.2018;
AgInt no REsp 1.851.111/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 29.6.2020; AREsp 1.280.000/SP, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJe 30.4.2018; REsp 1.736.145/SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 20.8.2018; REsp 1.790.627/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 30.5.2019; REsp 1.666.665/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 6.6.2017; REsp 1.879.009/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 6.10.2020; AgInt no REsp 1.901.841/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 6/4/2021. TESE REPETITIVA 11. Para fins dos arts. 1.036 e seguintes do CPC/2015, fixa-se a seguinte tese no julgamento deste recurso repetitivo: "Em se tratando de multa aplicada às pessoas jurídicas proprietárias de veículo, fundamentada na ausência de indicação do condutor infrator, é obrigatório observar a dupla notificação: a primeira que se refere à autuação da infração e a segunda sobre a aplicação da penalidade, conforme estabelecido nos arts. 280, 281 e 282 do CTB". RESOLUÇÃO DO CASO CONCRETO 12. Tendo em vista a unidade de interesse dos recorrentes, os Recursos Especiais serão analisados em conjunto. Dessa feita, merece provimento tanto o Recurso Especial interposto pelo SINDLOC/SP, quanto o promovido por Diego Wasiljew Candido da Silva e Dangel Cândido da Silva. CONCLUSÃO 13. Recursos Especiais providos, sob o regime dos arts. 1.036 e seguintes do CPC/2015 e da Resolução 8/2008 do STJ.
(REsp 1925456/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 21/10/2021, DJe 17/12/2021)