Tese
É de perigo abstrato o crime previsto no art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro. Assim, não é exigível, para o aperfeiçoamento do crime, a ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na conduta de quem permite, confia ou entrega a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou ainda a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança.
Hipótese fática
O Ministério Público de Minas Gerais ingressou com recurso especial (submetido ao rito dos recursos repetitivos) contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do mesmo Estado, que trancou a ação penal movida contra um dado acusado, ao fundamento de que o crime do art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro (Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança) seria de perigo concreto.
O recorrente argumentou que o entendimento do TJ/MG contraria o próprio texto do art. 310 do CTB, que não exige qualquer dano concreto para a realização da conduta, o que permite concluir que se trata de um crime de perigo abstrato.
Fundamentos
A controvérsia definida pelo STJ dizia respeito à definição da natureza do crime do art. 310 do CP, se de perigo concreto ou de perigo abstrato.
O STJ pontuou que, “por razões de política criminal, o legislador prevê, no Código Penal e em leis extravagantes, condutas cujo aperfeiçoamento se dá com a mera ocorrência do comportamento típico, independentemente da efetiva produção de risco ou dano dele decorrente.
Os tipos de perigo abstrato, por isso, são usados como uma forma de se estabelecer uma política criminal relativa a um dado tipo de bem.
É o que acontece com a dinâmica do tráfego viário, que mereceu do legislador essa atenção especial.
Conforme o STJ pontuou, “o crime de que estamos a tratar é um claro exemplo de dogmática penal direcionada a atender a uma política criminal de maior controle sobre um subsistema social, qual o tráfego viário, cada vez mais problemático em uma sociedade que ostenta índices alarmantes de violência no trânsito.”
A redação posta no art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro descreve a conduta de “Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança”.
A norma, de fato, não fala expressamente em um risco concreto, em um dano a ser causado.
Para entender essa afirmação, basta trazer à tona a redação dos arts. 309 e 311 do CTB, considerados crimes de perigo concreto:
Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
Art. 311. Trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
Aí está, aliás, uma das críticas que é feita – os tipos penais dos arts. 309 e 311 do CTB são de perigo concreto (em razão da expressão gerando perigo de dano), ao passo que o do art. 310 seria de perigo abstrato. Essa crítica parte da circunstância de que os arts. 309 e 311 punem o próprio motorista, ao passo que o delito do art. 310 pune aquele que delega a direção a terceiro. Ora, se a conduta mais grave, pelo menos em princípio, seria a do próprio motorista, de quem se exige um perigo de dano concreto, a conduta de quem delegou a direção a outrem também deveria ser de perigo concreto.
O STJ respondeu a essa crítica, para dizer que “Duas considerações (...) enfraquecem essa aparente contradição. Em primeiro lugar, como dito, o legislador foi claro, com a redação dada aos tipos penais acima referidos, em não exigir a geração concreta de risco na conduta positivada no art. 310 do CTB. Poderia fazê-lo, mas preferiu contentar-se com a deliberada criação de um risco para um número indeterminado de pessoas por quem permite a outrem, nas situações indicadas, a condução de veículo automotor em via pública. Em segundo lugar, não há total identidade das situações previstas nos arts. 309 e 310 do CTB. Naquele, cinge-se o tipo a punir quem dirige sem habilitação; neste, pune-se quem permite, confia ou entrega a direção de veículo automotor tanto a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, quanto a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança.”
Ao fim, o STJ concluiu “ser razoável atribuir ao crime materializado no art. 310 do CTB, a natureza de crime de perigo abstrato, ou, sob a ótica ex ante, crime de perigo abstrato-concreto, em que, embora não baste a mera realização de uma conduta, não se exige, a seu turno, a criação de ameaça concreta a algum bem jurídico e muito menos lesão a ele. Basta a produção de um ambiente de perigo em potencial, em abstrato, de modo que a atividade descrita no tipo penal crie condições para afetar os interesses juridicamente relevantes, não condicionados, porém, à efetiva ameaça de um determinado bem jurídico.”
De resto, é interessante observar que, mesmo que o delito do art. 310 do CTB tenha a natureza de crime de perigo abstrato, haverá situações de impossível tipificação, em razão da absoluta inidoneidade de se gerar danos a terceiros.
A esse respeito, o STJ considerou que “Não se exclui, por óbvio, a possibilidade de ocorrerem situações nas quais a total ausência de risco potencial à segurança viária afaste a incidência do direito penal, como se poderia concluir do exemplo de quem, desejando carregar uma caminhonete com areia, pede ao seu ajudante, não habilitado, que realize uma manobra de poucos metros, em área rural desabitada e sem movimento, para melhor posicionar a carroceria do automóvel. Faltaria tipicidade material a tal comportamento, absolutamente inidôneo para pôr em risco a segurança de terceiros.”
Dispositivos
Lei 9.503/97
Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
Ementa
RECURSO ESPECIAL. PROCESSAMENTO DE ACORDO COM O ART. 543-C. REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. CRIME DE TRÂNSITO. ART. 310 DO CTB. BEM JURÍDICO. SEGURANÇA DO TRÂNSITO. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. DESNECESSIDADE DE LESÃO OU EXPOSIÇÃO A PERIGO DE DANO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. Recurso especial processado de acordo com o regime previsto no art. 543-C, § 2º, do CPC, c/c o art. 3º do CPP, e na Resolução n. 8/2008 do STJ. TESE: É de perigo abstrato o crime previsto no art. 310 do Código de Trânsito Brasileiro. Assim, não é exigível, para o aperfeiçoamento do crime, a ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto na conduta de quem permite, confia ou entrega a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou ainda a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança.
2. Embora seja legítimo aspirar a um Direito Penal de mínima intervenção, não pode a dogmática penal descurar de seu objetivo de proteger bens jurídicos de reconhecido relevo, assim entendidos, na dicção de Claus Roxin, como "interesses humanos necessitados de proteção penal", qual a segurança do tráfego viário.
3. Não se pode, assim, esperar a concretização de danos, ou exigir a demonstração de riscos concretos, a terceiros, para a punição de condutas que, a priori, representam potencial produção de danos a pessoas indeterminadas, que trafeguem ou caminhem no espaço público.
4. Na dicção de autorizada doutrina, o art. 310 do CTB, mais do que tipificar uma conduta idônea a lesionar, estabelece um dever de garante ao possuidor do veículo automotor. Neste caso estabelece-se um dever de não permitir, confiar ou entregar a direção de um automóvel a determinadas pessoas, indicadas no tipo penal, com ou sem habilitação, com problemas psíquicos ou físicos, ou embriagadas, ante o perigo geral que encerra a condução de um veículo nessas condições.
5. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.485.830/MG, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 11/3/2015, DJe de 29/5/2015.)